29 setembro 2014

Passaporte de um Bombeiro - Marco Francisco

NOME: Marco António de Jesus Francisco
IDADE: 32
EMIGROU PARA: Estados Unidos da América
HÁ QUANTOS ANOS: 1 Ano
BOMBEIRO EM: A.H.B.V.Cantanhede
POSTO: Bombeiro de 1.ª
CUMPRIU QUANTOS ANOS DE SERVIÇO: 17 Anos de Serviço Efectivo 

Cada vez mais no nosso País, o número de Bombeiros a serem obrigados a abandonar a sua terra, a sua Corporação, tem aumentado.

Na sua grande maioria foram em busca de uma melhor qualidade de vida para si e para os seus. Existem Corporações de Bombeiros que viram partir dos seus quadros, dezenas de Bombeiros.
E é com esses Bombeiros que nós andamos a tentar falar.

São esses Bombeiros que, um a um, uma vez por semana, vos iremos dar aqui a conhecer!

Saber quem são, e para onde foram… e que mensagem têm para nos deixar.

DB - Bom dia, para quem não sabe, Marco Francisco, é o fundador do nosso blogue. Queira fazer o favor de se apresentar:

Marco Francisco - Bom dia. Pois... e aproveito para mandar aqui um enorme abraço de Agradecimento a todos os elementos que compõem esta Administração, têm sido incansáveis.
Bom, para aqueles que não me conhecem, o meu nome é Marco António de Jesus Francisco, tenho 32 anos de idade, e sou natural de Cantanhede.

DB - Pertence a que Corpo de Bombeiros?

MF - Pertenço ao Corpo de Bombeiros Voluntários de Cantanhede.

DB – Quantos anos tem de serviço?

MF - Tenho 17 anos de serviço efectivo, faço no próximo dia 8 de Outubro 2014, 18 anos a defender esta causa.

DB - Como ficou a sua situação no quadro do seu CB?

MF - Bem, a minha situação no quadro ficou normal. Sendo que abandonei o país no final de Agosto 2013 ainda me encontrava e encontro no Activo. Como legalmente ainda tinha mais que horas suficientes no ciclo operacional, este ano corrente ainda me encontro no Activo, deverei passar à Reserva no início do próximo ciclo operacional referente a 2015, aí sim, por não ter horas de serviço operacional.

DB – Todos nós sabemos que, mesmo fora do nosso País, a adrenalina ainda corre nas veias quando se ouvem sirenes, não é? Sente saudades?

MF - A adrenalina que sentimos nunca desaparecerá, nasce connosco e morre connosco, e claro que nos faz vibrar ao ouvir as sirenes dos veículos de emergência.
Saudades, nem se fala… Só num ano, no meu caso, mas são enormes, mais que muitas. Por muito que muitos de nós continuem a envergar a farda e o lema de Bombeiro, é sempre diferente, e amor ao nosso Estandarte só há um.
E depois vêm as Saudades de alguns verdadeiros Companheiros de luta, de momentos felizes, infelizes, bons, menos bons, ou maus, que passámos juntos.

DB – Como todos sabemos, felizmente para os que estão fora, a Legislação em vigor permite que possam ser Bombeiros noutro País, mantendo-se na mesma no Quadro de Reserva do seu Corpo de Bombeiros em Portugal. É Bombeiro no País onde se encontra?

MF - Sim, em processo de iniciação e reconhecimento de há meio ano a esta parte. Ainda aguardo reconhecimento de muitas formações e módulos de formação que tenho no meu, pequeno, currículo. Mas é um processo demoroso como se deve compreender, desde a tradução devidamente autenticada e reconhecida, à especificação modular de toda a formação.
Voltei, e com muito Orgulho, ao fim de 17 anos a ser novamente Estagiário, embora após o processo de reconhecimento de toda a formação que tenho venha a ser promovido a um posto de chefia.
Mas sempre com a ideia e promessa de voltar ao meu País um dia, e a defender a divisa “Vida por Vida” na casa onde cresci e me fez nascer enquanto Bombeiro.

DB – E qual é a sensação? Que é diferente todos sabemos, mas o quão diferente é?

MF - A sensação é muito diferente. Certo é que muitas das técnicas de combate, socorro, desencarceramento, guidelines, que aprendemos em Portugal são adaptadas das Americanas ou até mesmo Americanas, mas depois na prática aqui são totalmente diferentes. Desde o uso do material de sapador sempre, a forma como as equipas são criadas e divididas do Batalhão, à forma como se processa o pedido, desenvolvimento e acção.
Só um pequeno exemplo, todo e qualquer pedido feito para o 911 são activadas sempre 4 viaturas do Quartel – Ambulância, Auto-Escada, Combate e SQUAD – e claro, sempre com uma ou duas viaturas da Policia.
A principal diferença é o modo com que se pode ingressar aqui num Corpo de Bombeiros. Ao contrário do nosso país, aqui abrem as inscrições a nível Estatal, e depois vêm os Requisitos:
- 18 anos de idade ou 21, conforme os Estados; Diploma Escolaridade ou Equivalente (GED); Carta de Condução com registo limpo (multas, acidentes, etc); Formação EMT (Emergency Medical Technician) idêntica à de T.A.S/T.A.E. mas com um número muito superior de horas e módulos de formação e que após a sua conclusão nos dá a hipótese de nos tornar-mos Paramédico licenciado, através de inscrição em Universidade própria.
Foi esta a única entrave que eu tive quando iniciei o processo, embora tivesse bastantes horas de formação em socorrismo (TAT/SBV/TS/DAE) devidamente identificadas modularmente, não eram as suficientes, e tive de iniciar a formação de EMT, que está quase concluída.
Depois procede-se à aplicação, normalmente feita no departamento estatal, onde preenchemos o "background check", que é um documento nunca superior a 25 páginas quase idêntico ao Curriculum Vitae, depois temos uma entrevista com um Psicólogo para saber se conseguimos lidar com a pressão e stress no trabalho, que também serve de avaliação para as nossas "analytical skills". Depois temos um exame médico para avaliar a coordenação, abilidade, condição fisica, se temos uma boa saúde ou não.
No final temos o exame CPAT (Candidate Physical Ability Test), um exame rigoroso onde vamos demonstrar a nossa agilidade, força, velocidade e registência. São 8 exercicios que têm de ser feitos em menos de 10min e 20seg, usando um EPI com um peso de 50lbs. Desde subir escadas de lanços com 12.5lbs em cada ombro em 3 min, a busca rastejando por um túnel labirinto, o arrasto de resgate onde transportamos um manequim (diga-se pesado para caraças), até a mangueira onde temos de arrastar uma mangueira ultrapassando vários obstáculos.
Se passarmos isto tudo, temos o exame psicotécnico, que aqui tem muito valor final pois a maioria dos Departamentos de Bombeiros fazem o ranking final por estes resultados. Os tópicos são basicamente comunicação, julgamento de acção, resolução de problemas e memória. Passado isto tudo, de milhares de inscritos rezas para teres a sorte de seres selecionado para o Batalhão que pretenderes.. Lol
Isto tudo, seja para Voluntário seja para Profissional! A única diferença será mesmo que, sendo profissional, para além de todas as regalias normais (férias, seguro de vida, seguro de dentista, etc) tens um ordenado mínimo por ano nunca inferior aos $47.000.
Mas a principal diferença e dificuldade é a adaptação!
Adaptação ao serviço, aos novos Camaradas, á forma de trabalhar, à lingua. Mas o Gosto e Orgulho são maiores e ajudam á rapidez com que ela se faz.

DB - O que o levou a sair do País?

MF - Todos sabemos o buraco em que o País se encontra, e no meu caso sendo eu e a minha esposa novos, com dois filhos pequenos, tentámos procurar obter uma qualidade de vida melhor para dar aos nossos filhos. Viemos á procura do sonho que infelizmente, para já, o nosso País não nos pode proporcionar, antes pelo contrário. Como a minha esposa, embora tenha dupla nacionalidade (Luxemburgo / Portugal) já cá tinha vivido durante alguns anos, optámos por vir para cá atrás do "Sonho Americano"... Embora não tenha sido uma decisão nada fácil, diga-se, primeiro porque estamos do outro lado do oceano, depois porque deixámos a familia toda aí. À excepção do meu irmão e cunhada que residem na Suiça, todos os nossos familiares ficaram em Portugal.

DB – Era assalariado no seu Corpo de Bombeiros?

MF - Sim. Fui assalariado durante 12 anos, os dois primeiros como serviço eventual, e os restantes como contratado e posteriormente no quadro efectivo.

DB – Imaginamos que não tenho sido uma decisão nada fácil, mas… assim vai o nosso País. O que recorda do seu último dia de serviço?

MF - Uma decisão destas nunca é fácil de tomar! Mas o futuro e bem estar principalmente dos nossos filhos é superior a isso tudo, e têm sempre uma palavra a dizer. Embora fosse uma decisão muito ponderada e refletida, que teve como "ponto final" alguma pressão que havia sido alvo no ano anterior no meu CB. E, ou era na altura ou não era mais...
O meu último dia de serviço foi um dia de serviço normal, sem ocorrências de maior. Tinha andado dias antes com a GRUATA de Coimbra no combate aos incêndios em Bragança, Mogadouro, etc.
Mas o último dia foi um dia de muita ansiedade e tristeza á mistura. Afinal não foram dois dias… a minha família sempre foi ligada aos Bombeiros, o meu pai, o meu irmão que ainda é Subchefe no Quadro de Reserva e também se encontra emigrado há quase 3 anos, a minha esposa (sim, foi lá que nos conhecemos em 1996 e poucos meses depois iniciámos o nosso primeiro namorico), a minha cunhada, o meu cunhado. Ou seja, desde pequenito que fui criado naquele ambiente, enverguei pela primeira vez a farda com 8 anos, em 1990, na fanfarra dos Bombeiros. Passei lá a minha vida quase toda, e aquele dia fica marcado pela mistura de sensações que vamos sentindo durante o turno, até á ansiedade e nervosimo do final.
Sei, por exemplo, que não me despedi de ninguém… sai do turno, normalmente como fazia até a data… somente com um nó na garganta.
Só depois de assimilar a ideia de que “Era a ultima vez” é que peguei no telemóvel e me despedi daqueles que achei que realmente mereciam. Julgo que foi mais fácil assim.

DB – Qual foi a sensação, no dia em que fez a carta ou informou o seu Comandante?

MF - Eu preferia não responder a esta questão, somente por respeito à Instituição e Estandarte que sempre defendi. Mas, posso dizer que a sensação, ao contrário do que se possa imaginar, foi de Alívio e Paz de Espírito.

DB – Acompanha com frequência as noticias sobre os Bombeiros?

MF -  Claro que sim! Primeiro porque devido ao empenhamento e orgulho que nutro pelo trabalho desenvolvido aqui, no Diário de um Bombeiro, e em segundo porque tem de ser, simplesmente já não consigo viver sem isso. Todos os dias faço uma “googlada” e uma pesquisa das notícias sobre Bombeiros. Não só a nível nacional, mas também internacional.

DB – De tantos e tantos anos em que se registaram Bombeiros falecidos no combate às chamas, o ano passado irá ficar para sempre marcado na memória dos portugueses, e principalmente dos Bombeiros.
O que acha que fez com que as situações ocorridas o ano passado marcassem tanto, fossem sentidas e vividas de uma forma tão intensa e ao mesmo tempo tão triste?

MF -  Isso é sempre um assunto melindroso e dificil de falar porque cada um de nós têm uma opinião formada sobre isso que pode ou não estar correcta, mas o principal motivo para mim, que levou a que as mortes do ano passado fossem mais marcantes, e fossem sentidas e vividas dessa forma tão triste e intensa que levou á união de milhares de portugueses com os seus bombeiros foi eles terem tombado em numero tão grande e em tão pouco espaço de tempo.
Foi um mês que praticamente todos os dias as noticias falavam de incêndios florestais, bombeiros feridos e bombeiros mortos…
Outro motivo que marcou foi, na minha opinião formada da forma mais respeitosa que me merecem, a falta de respeito com que os responsáveis de Estado trataram aquele que deveria ter sido Luto Nacional.
Tal como o Sr Hernâni de Carvalho disse na altura, pensei que a morte de um Bombeiro fosse motivo para ser declarado Luto Nacional.
Porque independentemente do que digam e escrevem, os Bombeiros Portugueses são os únicos, únicos, no Mundo inteiro a funcionar como funcionam… com Bombeiros e Bombeiras que são voluntárias, que fazem o que fazem por amor á causa e sem receber nada em troca.
E na altura não houve!!
Houve um Presidente da República, que com todo o respeito que merece, expressa as Condolências e pede segredo. Mas que de seguida, e antes e depois, expressou as Condolências Públicas a outras pessoas e declarou dias de Luto Nacional por outras pessoas.
E isso entristece qualquer cidadão, principalmente Bombeiro… com todo o respeito que essas pessoas e respectivas famílias me merecem, mas, foi duro e triste reparar que, qualquer um deputado, Sr. Dr. ou jogador da bola merecem mais “consideração” que um Bombeiro, que tomba no seu «campo de batalha», a defender aquilo que não é dele, a centenas e centenas de quilómetros de casa.
Mas… como na altura tive oportunidade de referir, a Liberdade de Expressão permite-me dar a minha, mas é só uma opinião, e vale o que vale.

DB – Muito se falou e especulou sobre as causas de tal desgraça. Falou-se sobre muito, desde os Equipamentos de Protecção Individual, às comunicações SIRESP, falta de segurança, incumprimento de ordens, relatórios, etc.
Com base na sua experiência nos seus anos como Bombeiro no activo, tem alguma opinião formada, ideia em relação ao sucedido o ano passado?

MF - Sim. Já na altura tive a oportunidade de expressar a minha opinião em relação ao sucedido. É compreensível que em Incêndios daquelas proporções existam coisas que falhem, e algumas delas com os Bombeiros na frente de fogo. Mas quem é Bombeiro, somente esses, sabem bem a sensação inexplicável que sentimos na altura e nos impulsiona a cometer certos erros, mas, se não fossemos “malucos” o suficiente para isso, mais ninguém havia com a coragem suficiente para combater frentes de fogo como as que muitas vezes assistimos.
Depois existem outras coisas, as quais tenho conhecimento por desabafos de bombeiros presentes nesses T.O, mas que como é lógico não as tornarei públicas.
Agora, independente dos erros ou não, acho simplesmente vergonhoso as culpas terem sido somente atribuídas aos camaradas que pereceram no teatro de operações, vergonhoso!!
Sim, porque, primeiro eles já não estão entre nós, infelizmente, para se poderem defender, e assim será sempre mais fácil. Neste mundo rege a “Lei do mais fraco”, e em situações idênticas, o “mais fraco” por muita razão que tenha perde sempre, e é sempre o culpado de tudo. Muito em parte devido ao “apadrinhamento” que existe em quase todas as instituições não só de Bombeiros, onde o “peixe graúdo” se defende e protege um ao outro.
Mas, mais uma vez reforço que é somente a minha opinião... se estarei certo ou errado não se sabe, mas é uma opinião.

DB - Em quanto tempo, se for esse o caso, espera regressar a Portugal e voltar assim a defender a causa que durante tantos anos defendeu?

MF - LOL... Bem, eu prometi que vou voltar à minha “casa” um dia, e envergar a farda que tanto Orgulho e “Cagança” me dava, agora, o tempo não sei… não tenho sequer isso presente na minha ideia. Hei-de voltar…

DB - Tem ideia de quantos Bombeiros e Bombeiras perdeu a sua Corporação nos últimos anos devido à emigração?

MF - A Corporação da qual faço parte já perdeu uns quantos Bombeiros, até arriscava um número, mas… é melhor não, mas por exemplo, só da minha família, fomos quatro a emigrar. Eu e a minha esposa, e o meu irmão e a minha cunhada.

DB – E a nível Nacional?

MF - A nível Nacional, arrisco a dizer que já está perto dos 50% dos Bombeiros Portugueses. Só não se nota muito, para quem não está por dentro desta temática, porque fazem-se uma, duas, Escolas de Formação Inicial por ano na maioria das Corporações de Bombeiros, logo, uns tentam colmatar a falta dos outros, se é que me faço entender.

DB – Pois, infelizmente nós também não lhe sabemos dar uma resposta concreta. Sabemos que é um numero que tende a crescer de dia para dia, sabemos que existem Corporações de Bombeiros que perderam mais de metade dos seus elementos, mas… a cada dia que passa, em Portugal, a percentagem de emigração aumenta, e muito, e dentro desse “muito” fazem parte muitos Bombeiros.
Que mensagem tem a deixar a todos os seus Camaradas?

MF - Continuem com a garra que nos caracteriza!

Mas lembrem-se que, Heróis só nos filmes e mesmo assim no final morrem todos… por isso, defendam o lema, a nossa divisa “Vida por Vida” com toda a força e garra, mas, com o máximo de Segurança possível.
Lembrem-se que uma novidade são três dias, e que está mais que provado que a morte de um Bombeiro nem isso é… por isso, calma, juízo, tininho, e muita segurança!...
Um Bem-Haja a todos!

Muito Obrigado por teres respondido a estas perguntas, e pela tua colaboração. De certo que as mensagens de apoio dos nossos leitores irão começar a aparecer, demonstrado assim o Agradecimento pelos anos que em Portugal serviste a causa em prol e bem da Humanidade – Bombeiro.
Foi um prazer enorme termos tido a oportunidade de partilhar com todos estas pequenas letras.

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